A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2021, que tramita no Senado, estabelece que o Sistema Único de Saúde (SUS) forneça somente medicamentos que constam nas listas oficiais, numa tentativa de diminuir judicialização da saúde. Especialistas alertam que a medida é ineficiente e estrangula cada vez mais a lógica de integralidade e universalidade do SUS.
A PEC prevê que o oferecimento de medicamentos e de procedimentos terapêuticos aos usuários do SUS estarão restritos às tecnologias constantes na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e na Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases). A proposta também determina que todos os remédios a serem incorporados nas listas sejam analisados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (Conitec).
A PEC visa a alterar a Constituição para delimitar o conceito de saúde e, assim, o que será oferecido pelo SUS. Constitucionalmente, a saúde é definida como um direito do cidadão e um dever do Estado. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde é o completo bem-estar físico, mental e social.
O senador Marcelo Castro (MDB-PI), autor da proposta e ex-ministro da saúde, disse ao JOTA que “o conceito de saúde é difuso”. “A proposta vai especificar que tipo de saúde nós temos. A gente procura racionalizar para desjudicializar. Não tem saúde máxima para todo mundo, isso é impossível, especialmente para o Brasil, um país em desenvolvimento”, afirmou.
Um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2019, mostrou que as demandas judiciais relativas à saúde pública aumentaram em 130% entre 2008 e 2017, e o número de processos judiciais cresceu em 50%. O senador destacou que, em 2021, a judicialização da saúde importou R$ 8 bilhões do governo federal. “O orçamento da saúde é inelástico, se eu usar R$ 8 bilhões para demandas que não estavam previstas, eu retiro recursos de outros serviços, como as vacinas, a hemodiálise, o tratamento para câncer”, disse.
Castro explicou que, por se tratar de saúde pública, é preciso levar em consideração o custo-benefício dos medicamentos que serão fornecidos. “Precisamos ter o maior retorno para a maioria dos brasileiros. Com o dinheiro gasto por um paciente poderíamos custear outros dez. Evidentemente, existem exceções, mas elas serão definidas pela Conitec”, destacou.
O senador mencionou que, na União Europeia, cerca de 75% dos pedidos de incorporação de novos medicamentos foram considerados apenas uma nova roupagem da mesma tecnologia. “Existe interesse dos laboratórios nos pedidos de incorporação porque novas tecnologias são mais caras. Mas existem medicamentos ótimos, que são baratíssimos e efetivos, como a penicilina e o AAS”, afirmou.
Castro ressaltou que, ao submeter os pedidos de incorporação à Conitec, fica garantido que “só sejam fornecidos pelo SUS tecnologias que realmente trazem benefícios”. O senador ainda destacou que o sistema facilita as prescrições e impede que médicos receitem medicamentos sem eficácia comprovada cientificamente. “A autonomia do médico é relativa e está restrita à ciência. Se minha PEC já tivesse sido votada na pandemia de Covid-19, nenhum profissional do SUS poderia prescrever cloroquina”, afirmou.
Opinião de especialista
Para Fernando Aith, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP e colunista do JOTA, restringir o fornecimento de medicamentos do SUS à Rename e Renases não vai resolver a judicialização da saúde no Brasil. “É um erro ver a judicialização como um fato único. As pessoas gostam de tentar simplificar um fenômeno extremamente complexo”, disse.
O professor explica que existem diferentes tipos de judicialização – a principal delas, cerca de 50% das demandas, são solicitações de medicamentos que já foram analisados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e incorporados pela Conitec, mas que não estão disponíveis nos postos de saúde e hospitais. “Se o SUS funcionar bem, metade da judicialização acaba. Nos debates sobre o tema, ninguém fala sobre a falha do sistema”, destacou.
Outros 20% das demandas tratam de medicamentos que não estão registrados na Anvisa e não foram incorporados na Rename. Essa judicialização geralmente é para medicamentos e tratamentos de doenças raras. Aith explicou que esse tipo de tecnologia não é analisado pelos órgãos responsáveis porque a farmacêutica não entrou com o pedido de análise e, sem ele, a Anvisa não decide. “A indústria, muitas vezes, não tem interesse em registrar o medicamento porque o Brasil, diferente da Europa e dos EUA, taxa a entrada do produto”, disse.
Como o medicamento não está no país, os processos solicitam que o governo traga e custeie a tecnologia. “É um absurdo um doente raro brasileiro saber que na Europa existe uma cura e não ter acesso”, ressaltou o professor.
Segundo ele, outra parte da judicialização é a de medicamentos para uso off-label. Ou seja, tecnologias que foram analisadas pela Anvisa para certo tipo de tratamento, mas que também podem ser úteis em outros procedimentos. “O viagra foi descoberto dessa forma. É um tipo de judicialização mais controversa e delicada”, afirmou.
A outra parcela das demandas judiciais são de medicamentos que foram aprovados pela Anvisa, mas que ainda não foram analisados e incorporados pela Conitec. Aith explicou que a Rename é atualizada com morosidade porque “a Conitec não tem estrutura suficiente e não está conseguindo dar vazão adequadamente às demandas de incorporação”.
Por essa razão, o professor ponderou que limitar os medicamentos fornecidos pelo SUS exclusivamente à análise da Conitec não resolverá a judicialização da saúde. “O órgão foi criado, em 2011, a partir de uma alteração na Lei 8080/90, para reduzir as demandas judiciais e criar um procedimento público de incorporação. Mas a lei não resolveu nada”, destacou.
Aith também sustentou que, além da morosidade, “a Conitec é extremamente autocrata, tecnocrata e pouco permeável às demandas da sociedade”. Ele explicou que o órgão apenas analisa e indica os medicamentos, mas a decisão de incorporação é do secretário de ciência e tecnologia do Ministério da Saúde e do ministro da Saúde: “A incorporação ou não de um medicamento tem um crivo essencialmente político do governante de plantão”.
Segundo o professor, o representante da sociedade dentro da Conitec é o Conselho Nacional de Saúde (CNS), porém o órgão também é composto pela indústria e por médicos e representa diferentes interesses.
Aith sugeriu que “se melhore o orçamento para a Política Nacional de Assistência Farmacêutica e que se aperfeiçoe e democratize a Conitec. A saúde não tem que brigar por recursos com a própria saúde”, concluiu.
Fonte: JOTA. Leia matéria completa.