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Plano de parto: da necessidade de observância pelos médicos

O parto, em toda a história da humanidade, teve a mulher como tomadora de decisões. Esta participava ativamente do nascimento, em ambiente íntimo e privado, e contava apenas com um (a) acompanhante e/ou parteira para ajudá-la naquele processo fisiológico e natural de dar à luz ao seu filho.

A parturiente possuía o maior controle possível sobre seu corpo, conduzia o parto conforme suas necessidades e não havia qualquer intervenção desnecessária – do momento do rompimento da bolsa até o efetivo nascimento do bebê, o que lhes trazia uma sensação de satisfação e superação profunda após toda a experiência.

Contudo, nas últimas décadas, com o avanço da medicina e a maior segurança oferecida pelos hospitais em caso de intercorrências no parto, esse protagonismo foi deslocado da mulher para os médicos, que, embora devessem tão somente observar a evolução do parto e estar de prontidão numa eventual complicação, assumem decisões cruciais pela sua paciente,  desde a forma que ela irá parir até a realização de procedimentos desnecessários e muitas vezes já não recomendados expressamente pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

A bem da verdade, utilizando-se das palavras de Érica de Paula (grande defensora dos direitos das gestantes, parturientes, lactantes e mães e coautora do filme “O Renascimento do Parto”):

“Ao analisarmos as taxas de cesariana do Brasil (a 2ª maior do mundo), os dados não mentem: quem quer ter um parto normal está sendo submetida a uma cesariana e quem quer ter uma cesariana está conseguindo sem nenhuma dificuldade. Mulheres que iniciaram o pré natal sonhando parir estão tendo seus desejos moídos ao longo da esteira da linha de produção de nascimentos”.

Assim, atualmente, a ocasião do parto, para um grande número de mulheres, se torna um momento de total vulnerabilidade, insegurança, medo e dor, com impactos negativos à experiência do nascimento e muitas vezes com danos psicológicos graves posteriores.

Esse desrespeito à mulher está tão “normalizado” e generalizado que várias gestantes optam por fazer um parto diferente do desejado (a cesariana em vez do parto normal), por puro medo e justos receios à não observância das suas vontades e necessidades durante este momento.

Nesse contexto, o plano de parto surge como uma solução para recuperar a autonomia e o poder da parturiente sobre seu próprio parto, além de auxiliar a equipe médica que irá atendê-la, trazendo qualidade ao serviço que será prestado. Este plano é definido, essencialmente, como um documento em que a mulher deixa claro suas vontades, necessidades e preferências, o que ela quer/autoriza ou não no pré, durante (nas diversas fases do trabalho de parto) e pós-parto, em relação a si e ao seu bebê.

Vale ressaltar que trata-se de uma espécie das Diretrizes Antecipadas de Vontade e, para lhe trazer um caráter oficial, é importante ser registrado em cartório, protocolado no hospital em que o parto ocorrerá ou encaminhado via notificação extrajudicial (caso haja recusa). Em hipóteses específicas, há, ainda, a possibilidade de se contratar um advogado para que se interponha medida preventiva para a aceitação e cumprimento do mesmo.

Na elaboração do plano de parto, o conteúdo a ser registrado pode incluir (i) o tipo de parto – normal ou cesárea; (ii) a garantia da presença do acompanhante, bem como da doula; (iii) a (des)autorização de enema, tricotomia, realização da Manobra de Kristeller, indução com ocitocina, da episiotomia e do rompimento da bolsa artificialmente; (iv) a garantia que não a proibirão de caminhar, comer, beber, dormir, tomar banho, dentre outras vedações injustificadas; (v) a escolha da posição que lhe for mais confortável, a iluminação e som do ambiente; (vi) a preferência pelo contato pele a pele com o filho logo após o parto, (vii) o desejo da amamentação na primeira hora e (viii) a determinação do momento de corte do cordão umbilical (e quem o fará) e dos cuidados com o recém-nascido (aplicação de colírios, ingestão de vitaminas, momento do primeiro banho etc). Ademais, em casos de cesárea, pode-se determinar, ainda, o momento que será feita (após entrar em trabalho de parto), a vontade que o campo cirúrgico (tecido utilizado para fazer uma barreira de proteção entre a área da cesárea e a parte superior do corpo da mulher) seja baixado na hora do nascimento e todas as outras escolhas já supramencionadas.

Na hipótese de ocorrer alguma intercorrência que impossibilite o médico e/ou sua equipe a cumprir algum dos itens listados, o médico responsável pelo parto deverá explicar, verbalmente (e tão logo possível, por escrito), de forma clara e precisa, os motivos ensejadores das providências diferentes das desejadas pela paciente. Esse direito está positivado no próprio Código de Ética Médica, o qual tem como valores a autonomia do paciente e o consentimento informado.

Insta destacar que, caso o procedimento realizado sem autorização não esteja embasado em evidências, ocorrerá uma não observância às diretrizes do plano de parto da paciente, configurando-se, desse modo, uma violência obstetrícia – “ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento explícito, ou em desrespeito a sua autonomia, integridade física e mental”[1] – e poderá ser levada ao judiciário por ela, a fim de ter seus danos reparados.

Dessa forma, a realização de um plano de parto é uma excelente medida para reduzir significativamente a chance de eventuais violências obstetrícias, sendo recomendado pela OMS desde 1986. No âmbito nacional, encontra-se nas Diretrizes Nacionais de Assistência do Ministério da Saúde, onde consta a obrigatoriedade de se questionar sobre a existência ou não de um plano e, em caso afirmativo, a de ser lido com a paciente e discutido.

Ademais, cabe registrar, por oportuno, que este documento pode servir de prova judicial na demonstração da ausência de consentimento ou o não respeito à sua vontade por parte da equipe médica, a fim de buscar uma justa indenização, ainda que não tenha ocorrido nenhum erro médico. Importante aqui salientar que é possível que se tenha uma violência obstetrícia sem necessariamente a ocorrência de um erro médico. A depender da gravidade do ato, pode ser enquadrada, inclusive, como constrangimento ilegal ou até lesão corporal.

Cita-se, a título de exemplo, um casal que obteve indenização de R$ 15 mil em virtude de extravio da placenta, mesmo tendo a parturiente deixado claro que queria dispor da mesma após o parto, para conter eventuais futuras doenças da criança.

Desse modo, essas agressões físicas, verbais ou psicológicas caracterizam então a violência obstetrícia, assim como o alto índice de medicalização, intervenções e procedimentos desnecessários e, em muitas vezes, contraindicados pela OMS. Tudo isso pode desencadear um abalo psicológico significativo na mulher, gerando uma depressão pós parto, uma dificuldade de aceitação do “novo” corpo, medo e/ ou vergonha de relações sexuais e receio de uma nova gestação.

As mulheres que tiveram seus direitos ou suas preferências não atendidas injustificadamente podem, portanto, buscar a reparação de seus danos – psicológicos, físicos e estéticos – na esfera judicial, responsabilizando o (i) médico e/ou (ii) a equipe que o assistiu e/ou (iii) o hospital.

Fonte: JOTA. Leia matéria completa.

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