O intenso desenvolvimento da neurotecnologia, com a evolução das técnicas de interface conectiva entre o cérebro e a máquina, e a consolidação do uso de algoritmos de inteligência artificial nas interações entre o ser humano e sistemas computacionais estão expandindo as fronteiras da ação humana, gerando esperança e expectativa sobre seus impactos positivos na economia e, na área da saúde, no tratamento e na cura de doenças.
Sobre isso, ainda é vivo na memória de todos o episódio que vivemos na Copa do Mundo de 2014, quando um jovem paraplégico deu o chute inicial da abertura do Mundial, contando com a ajuda do exoesqueleto BRA-Santos Dumont 1, vestimenta robótica passível de ser controlada pela atividade cerebral do paciente, captada por meio de uma touca com sensores aplicados ao couro cabeludo.
Podemos e devemos celebrar esses avanços que a tecnologia está proporcionando à vida e ao ser humano.
Não podemos perder de vista, contudo, os limites éticos envolvidos nesses procedimentos, bem assim a ascensão do chamado “viés algorítmico”, expressão associada, na maior parte das vezes, a práticas discriminatórias e à reprodução de desigualdades sociais, como vemos, por exemplo, no documentário “Coded Bias”, que revela falhas na tecnologia de inteligência artificial responsável pelo reconhecimento facial, culminando com discriminação racial — o que, infelizmente, também já se observou em políticas brasileiras de segurança pública que se utilizam da tecnologia do reconhecimento facial.
Como se vê, essa escalada evolutiva traz reflexões que dizem respeito à própria integridade psíquica do ser humano.
São mudanças que reverberam diretamente na ordem jurídica e nos direitos humanos — que guardam consigo a característica da cambialidade à vista dos carecimentos sociais: a liberdade e a igualdade passam a ser objeto de profundos questionamentos nesse panorama, no qual as ações intersubjetivas passam a ser impelidas por fatores tecnológicos e o agir humano pode ser objeto de interferência direta de processos algorítmicos automatizados, com o surgimento de novos e exógenos mecanismos de possibilidade de ação — e de discriminação.
É natural, portanto, esperar do constituinte derivado a sensibilidade em promover a expansão da compreensão jurídica da dignidade humana nesse novo contexto digital, a fim de garantir que, diante do existente dinamismo tecno-social, o desenvolvimento científico e tecnológico se dê a serviço da pessoa humana e com respeito à vida, à igualdade e à liberdade.
Caminham nesse sentido as pesquisas e iniciativas já existentes na esfera internacional — como a NeuroRights Foundation, da Universidade de Columbia, e a Recomendação da OCDE sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia —, e a recente aprovação, pelo Chile, da Lei 21.383, de 25 de outubro de 2021, que consagrou o primeiro marco regulatório sobre o direito à neuroproteção na América Latina, contemplando balizas para a tutela da privacidade mental.
O desenvolvimento tecnológico e científico deve, assim, respeito à integridade mental, de modo a assegurar a privacidade psíquica, a igualdade no acesso a mecanismos de incremento cognitivo cerebral e a própria transparência algorítmica, de modo a tutelar o ser humano contra o preconceito algorítmico em processos automatizados de tomada de decisão.
O Brasil, como um dos principais celeiros, mercados e destinatários globais dos progressos da tecnologia, precisa reinserir o giro kantiano no contexto das evoluções tecnológicas e científicas. É necessário reafirmar o histórico do protagonismo brasileiro na defesa dos direitos humanos para ampliar a compreensão jus-normativa da dignidade da pessoa humana diante do progresso da neurotecnologia e do uso dos algoritmos de inteligência artificial, de modo a internalizar em nossa Constituição Federal a proteção a esse novo direito humano: o neurodireito.
Fonte: JOTA. Leia matéria completa.