A aprovação da Lei da Telessaúde (Lei 14.510/2022) traz uma série de impactos, grande parte positivos à ampliação do acesso à saúde no Brasil, em especial ao SUS, que poderá promover uma melhor regulação na oferta de atendimento à população.
Neste primeiro texto limitaremos nossa análise à área da medicina, pois, por mais de 20 anos, a telemedicina foi foco de diversas limitações pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Em um segundo artigo, avaliaremos as consequências para as demais áreas da saúde – enfermagem, odontologia, farmácia, psicologia etc.
O CFM, pela Resolução 1.643/2002[1] e nos Códigos de Ética Médica, limitava o atendimento à distância intermediado pelo uso de tecnologia às seguintes hipóteses: a) a teleconsulta apenas com exame físico prévio do paciente; e b) atendimentos de urgência ou emergência.
Exceções para confirmar a regra foram os casos da telerradiologia e telepatologia, que contaram com regulamentação própria e autorizações específicas (Resolução CFM 2.107/2014 e Resolução CFM 2.264/2019, respectivamente).
Em 2018, houve um ensaio do CFM para rever a prática da telemedicina, com a publicação da Resolução 2.227/2018. Após grande repercussão negativa na comunidade médica, o texto foi revogado antes mesmo de entrar em vigor[2].
O impulso para a ampliação da telemedicina veio, a bem da verdade, com a pandemia da Covid-19: após pressão do Ministério da Saúde, o CFM publicou ofício[3] autorizando algumas práticas de telemedicina, sem menção expressa à teleconsulta. Poucos dias após a acanhada atuação do CFM, o próprio ministério editou a Portaria 467/2020, que autorizou a telemedicina de forma ampla durante a pandemia.
Diante dessa precária resposta do CFM, o Congresso Nacional houve por bem editar a Lei 13.989/2020.
O debate sobre essa lei girou em torno da outorga, ao CFM, da competência para regulamentar a telemedicina após o término da pandemia[4]. O Congresso acabou concedendo ao conselho carta branca para tratar da telemedicina. Ao delegar poderes tão amplos à autarquia profissional, o legislador praticamente renunciou ao seu dever-poder de legislar.
Especificamente no que se refere à medicina do trabalho, o CFM, antes mesmo de decretado o término da pandemia pelo Ministério da Saúde, tomou medidas para limitar a telemedicina na área da medicina do trabalho ao vedar a realização de exame médico ocupacional por esse meio[5].
Tão logo declarado o encerramento da pandemia pelo ministério[6], o CFM editou nova regulamentação da telemedicina (Resolução 2.314/2022), que impôs algumas condições à prática da atividade[7].
A nova norma do CFM não passou pelo crivo da análise de impacto regulatório imposta pela Lei da Liberdade Econômica[8] e por seu regulamento[9]. Esse cenário foi corrigido pela recém-editada Lei da Telessaúde, que revogou a Lei 13.989/2020.
Com a edição da Lei da Telessaúde, a Resolução CFM 2.314/2022 deve ser lida sob os nortes principiológicos impostos pelo legislador:
- a limitação à telessaúde (ou à telemedicina) deve demonstrar que a medida é essencial para evitar danos à saúde, reforçando, em nosso entendimento, a obrigação de o CFM evidenciar a necessidade da medida à adequada assistência à saúde da população;
- é garantida a autonomia do profissional da saúde na prática da telessaúde, podendo recusar o atendimento à distância, se assim entender mais adequado;
- o paciente deve consentir livremente para realizar o atendimento por telessaúde;
- direito de recusa do paciente a realizar o atendimento por telessaúde, garantido o atendimento presencial quando requerido;
- os atos dos profissionais de saúde têm validade nacional, sendo dispensada a inscrição secundária ou complementar, mesmo que o paciente atendido esteja em outra jurisdição.
Ao analisarmos a Resolução 2.314/2022 identificamos alguns pontos de convergência com a nova lei federal: a) a garantia de autonomia do médico; b) o consentimento do paciente; e c) a dispensa de registro complementar na jurisdição na qual o paciente está localizado.
Por sua vez, não podemos deixar de destacar que, para a teleconsulta, o CFM impôs ao menos duas restrições não previstas na Lei da Telessaúde: a) obrigação de consulta presencial em intervalos de até 180 dias para pacientes crônicos ou que requeiram acompanhamento por longo tempo[10]; e b) obrigação de acompanhamento com consulta médica presencial, independentemente do pedido do paciente.
Também consideramos que a obrigação de o profissional pessoa física comunicar ao CRM local que promove atendimento por telemedicina[11] diverge do determinado pelo legislador na Lei da Telessaúde.
Em relação à medicina do trabalho, foi mantida a limitação à realização de exame médico ocupacional na recém-editada Resolução 2.323/2022.
Após a publicação da Lei da Telessaúde, a imposição de limitação à prática da telemedicina pelo CFM deve ser fundamentada em evidência de malefício à saúde dos pacientes (princípio da prevenção), em razão da competência normativa da autarquia não poder extrapolar as definições estabelecidas pelo legislador federal.
De um modo ou de outro, o legislador, ao obrigar os órgãos reguladores a indicar o impacto negativo da telessaúde para sua restrição, acabou reiterando obrigações já trazidas pela Lei da Liberdade Econômica, que orienta as autarquias federais a avaliarem previamente o impacto de suas regulamentações.
Esperamos que este artigo sirva como um incentivo para que os conselhos profissionais, incluído o CFM, passem a avaliar o impacto de suas medidas e, como exercem uma atividade pública, passem a ouvir toda a sociedade civil.
Em nosso próximo artigo, apresentaremos nossas considerações sobre os demais conselhos profissionais do setor da saúde.
Fonte: JOTA. Leia matéria completa.