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Idosos e LGPD, tudo a ver?

Já não é novidade que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) trouxe “novidades” com relação ao tratamento de dados pessoais de pessoas físicas. E o termo entre aspas foi grifado desta forma pelo fato de que o tema não é necessariamente novo, embora tenha ganhado corpo no país apenas nos últimos anos justamente por conta da entrada em vigor da legislação.  

Com o objetivo de garantir a privacidade, direito previsto desde a Constituição de 1988, a LGPD traz o fundamento da autodeterminação informativa. A grosso modo, este fundamento devolve aos cidadãos que tem seus dados pessoais tratados (“titulares”), a capacidade de controlarem a sua circulação. Isso tudo, por meio de regras que deverão ser observadas pelas organizações que utilizam os dados e por uma série de direitos garantidos aos titulares.  

Preocupando-se em proteger o público mais vulnerável, em seu artigo 14 a LGPD também prevê que os dados de crianças e adolescentes somente poderão ser tratados com o consentimento de um de seus pais ou responsáveis. A essa autorização, que de maneira geral deve ser livre, informada e inequívoca, se acrescenta a exigência de seja específica. Além disso, o tratamento deve ocorrer sempre no melhor interesse do menor. 

Contudo, um questionamento vem à mente quando analisamos essa condição especial conferida às crianças e adolescentes em razão de sua vulnerabilidade presumida: e quanto aos idosos? Devem ser considerados vulneráveis à luz da LGPD? Ou seja, o tratamento de seus dados pessoais pode acontecer sem qualquer exigência suplementar? 

Para realizarmos tal análise é importante, antes de mais nada, compreendermos as origens da LGPD. Como brevemente antecipado, a ideia sobre proteção de dados pessoais não é propriamente brasileira e não nasceu na última década. De maneira contrária, o conceito de privacidade como o direito a “ser deixado só” faz referência ao final do século 19, citado pela primeira vez em artigo de Louis Brandeis e Samuel Warren, publicado na Harvard Law Review. Já as principais legislações nacionais sobre proteção de dados pessoais remontam à Europa da década de 1970, sendo paulatinamente desenvolvidas desde então. 

Neste tempo, incorporando seus aspectos culturais e locais, tais legislações refletem as preocupações das sociedades com o desenvolvimento das tecnologias de informação e com o exponencial uso de dados pessoais de seus cidadãos por corporações globais e governos.  

Vimos a promulgação e vigência do Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais da União Europeia que, superando a Diretiva nº 95/46/CE, trouxe a necessidade global de abordar o tema de maneira séria. Isso porque, não só se aplica extraterritorialmente como também limita o tratamento de dados pessoais de cidadãos europeus por países que não possuam garantias adequadas.  

Neste contexto, o Brasil, que já vinha tendo discussões a respeito do tema desde o ano de 2010, finalmente desenvolveu a sua própria legislação. Certamente inspirada no GDPR, a LGPD foi promulgada em 2018 e entrou totalmente em vigor apenas em agosto de 2021.  

Embora a legislação brasileira tenha tido a preocupação de incorporar valores locais à LGPD, não sendo meramente um espelho de seu correspondente europeu, não foi necessariamente abrangente em pontos importantes. Especialmente, chama a atenção o fato de não ter conferido aos idosos condição especial para o tratamento de seus dados pessoais, semelhante ao previsto para crianças e adolescentes.  

Na verdade, os idosos são brevemente mencionados apenas no artigo 55-J, XIX, ao tratar sobre as competências da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Nesta oportunidade, determina que a ANPD deverá zelar para o tratamento de seus dados pessoais seja efetuado de maneira simples, clara, acessível e adequada ao seu entendimento.  

Todavia, possivelmente seguindo as definições contidas no GDPR, que também traz regras específicas apenas para o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, é possível inferir que a LGPD não considera, portanto, os idosos como sendo vulneráveis. 

Esta compreensão é importante porque, pela metodologia civil-constitucional consagrada por Pietro Perlingieri, o direito deve funcionar de maneira sistêmica, sendo que os valores constitucionais devem ser refletidos em todo o ordenamento.  

A Constituição determina, em seu artigo 230, o dever de amparo aos idosos. Além disso, a Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) define regras claras à proteção das pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, definição legal de idoso. Em seu artigo 2º, também determina que os idosos gozarão de todos os direitos fundamentais.  

Já em seu artigo 71, o Estatuto do Idoso ainda confere tratamento diferenciado aos idosos, por exemplo com relação ao acesso justiça, por meio da prioridade de tramitação de processos e procedimentos. 

É possível concluir que o Estado brasileiro considera os idosos como cidadãos vulneráveis, ao menos lhes reafirmando a garantia de inúmeros direitos e prioridades. Tal posicionamento, inclusive, é semelhante ao conferido justamente às crianças e aos adolescentes, que também dispõem de regramento semelhante na Lei 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).   

Qual seria, portanto, a justificativa jurídica existente para o fato de LGPD dar tratamento diversos às crianças e não aos idosos, considerando que ambos são tratados pelo ordenamento como indivíduos que necessitam de tratamento diferenciado, tudo isso em nome do princípio da igualdade material e equidade? Será que a ausência deste grupo se deve ao fato de que ainda gozem de sua plena capacidade civil, conforme definições do Código Civil? 

Caso a LGPD estipulasse que considera vulneráveis apenas aqueles indivíduos que não se encontram no gozo pleno de suas capacidades civis, deveria ter trazido no artigo 14 que tais exigências se aplicam também àqueles indivíduos absolutamente ou relativamente incapazes, por outras razões que não a idade, o que não ocorreu.  

Logo, acredita-se que a LGPD, valendo-se de sua inspiração original em legislações alienígenas, acidentalmente não tenha refletido acerca da necessidade de imputar exigências específicas para o tratamento de dados pessoais de idosos, apenas os mencionando de maneira subsidiaria em capítulo que sequer traz determinações aos agentes de tratamento, mas sim à ANPD. 

Talvez ciente de tal lacuna, a ANPD, na Resolução nº 2/2022, ao especificar o que seria considerado como “tratamento de alto risco”, engloba como tal o tratamento de dados pessoais de crianças, adolescentes e de idosos[1]. Tal corrobora a interpretação de que, diferentemente do previsto pela LGPD, cabe tutela diferenciada a este grupo específico de indivíduos.  

Importante ainda esclarecer que, apesar de vulneráveis, os idosos possuem necessidades e características diversas daquelas dispensadas pela legislação às crianças e aos adolescentes, motivo pelo qual merecem, no futuro, considerações em relação ao tratamento de seus dados.  

Inclusões no próprio Estatuto do Idoso para incorporar aspectos sobre a sua privacidade e o tratamento de seus dados pessoais também podem ser uma estratégia interessante para essa construção.  

Com efeito, embora a LGPD tenha sido tímida em abarcar tal grupo como vulnerável, vê-se que merecem atenção especial do legislador. Neste contexto, embora a ANPD já tenha iniciado essa abordagem quando da Resolução, possivelmente ainda restam complementações necessárias para garantir que o tratamento de seus dados pessoais seja realizado de forma adequada às suas vulnerabilidades.

Fonte: JOTA. Leia matéria completa.

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