Desde 2016, quando o microtargeting foi utilizado como ferramenta para influenciar as eleições estadunidenses, é praticamente imediata a associação da proteção de dados em processos eleitorais à propaganda. O episódio acelerou os debates normativos sobre o tema e, no Brasil, esta será a primeira vez que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) será aplicada a uma eleição geral.
Embora tenha sido publicada em agosto de 2018, a Lei 13.709 entrou em vigor em setembro de 2020, tendo parte de suas disposições já previstas nas resoluções aplicáveis àquele pleito, como é o caso da vedação à utilização, cessão ou doação de bancos de dados por pessoas físicas ou jurídicas em favor de candidatos, partidos ou coligações[1]. No entanto, a interseção entre política e proteção de dados, em especial em anos eleitorais, tem suscitado dilemas que vão além da propaganda.
É o caso do debate que pautou a audiência pública realizada nos dias 2 e 3 de junho deste ano pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que reuniu representantes de partidos, instituições e da sociedade civil para discutir a publicização de dados pessoais dos candidatos na plataforma DivulgaCand.
No Brasil, como parte do processo de registro de candidatura, é requerida uma série de dados de cunho pessoal, patrimonial e partidário, entre os quais gênero, estado civil, idade, cor/raça, certidões criminais e declaração de bens. A extensão dos dados requeridos e a publicização destes a qualquer interessado no portal DivulgaCand têm suscitado debates. Afinal, como equilibrar o interesse público e o direito à privacidade dos candidatos?
É possível ser candidato e manter a privacidade de seus dados?
É sabido que a Justiça Eleitoral é uma das maiores detentoras de dados biométricos das Américas, ultrapassando o número de 120 milhões de cadastros de eleitores em arquivo eletrônico com foto, assinatura e impressões digitais. E, a cada eleição, são acrescidas outras informações a essa base, à medida que recebe os pedidos de registros de candidatura a cada pleito, o que inclui dados considerados sensíveis no âmbito da LGPD. Em 2018, foram 29.085 pedidos de registros aos cargos de presidente/vice, governador/vice, senador e deputado, enquanto que nas eleições municipais de 2020 este número atingiu 557.678 pedidos.
A Lei 13.709/2018 dedica um de seus capítulos à regulação do tratamento de dados pessoais pela Administração Pública, prevendo a possibilidade de fazê-lo na persecução do interesse público, o que inclui a coleta, análise e disposição destes dados. E, em especial no que tange a publicização dos dados tratados, o artigo 7 §3º de tal norma declara que a disponibilização pública destas informações deve considerar a finalidade, boa-fé e o interesse público.
Esse robusto banco de dados, que é notoriamente detalhado e público quando falamos de candidatos, leva a questionamentos quanto a se todos os dados requeridos no registro de candidatura, em especial aqueles considerados sensíveis, são de fato necessários e utilizados para propósitos legítimos e específicos, tal como requerem os princípios da proteção de dados no Brasil.
Cabe comentar que a legislação eleitoral é criteriosa ao estabelecer as condições para que uma pessoa possa ser elegível a um cargo político, o que, em última instância, significa regular o exercício de um direito político em uma norma infraconstitucional. Será que a privacidade ou, no caso, o não exercício dela, deve se somar a esta lista de requisitos?
Acesso à informação e o interesse público
Em um contraponto, a eleição representa o exercício do poder de influenciar o Estado, escolhendo quem nos representará nos espaços de decisão. Não se pode esperar um voto formado pela livre convicção, mas restrito por informações parciais daquele que se pretende uma pessoa pública. Como traz o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a liberdade de expressão e o acesso à informação estão invariavelmente ligados, sendo essenciais para uma escolha informada e para a formação da opinião pública.
Sob tal perspectiva, entende-se que a publicização das informações no registro de candidatura têm um papel importante no fortalecimento democrático, garantindo a possibilidade de controle social e de colaboração na construção de políticas públicas. Ao eleitor, elas possibilitam conhecer seus candidatos, denunciar irregularidades nas declarações ou analisar sua evolução patrimonial; aos demais candidatos, a possibilidade de impugnar os registros de opositores; à sociedade civil, a possibilidade de contribuir para a cultura democrática, principalmente a partir de pesquisas para formulação de políticas públicas. É o caso, por exemplo, das estatísticas disponibilizadas pelo próprio TSE, que nos permitem concluir a baixa presença de candidaturas femininas nos pleitos e que, em um segundo momento, fomentam campanhas de incentivo à participação feminina na política.
Os próximos passos desse debate
Na audiência pública promovida pela Justiça Eleitoral para debater os possíveis impactos da implementação da LGPD no registro de candidatura, foram ouvidos representantes de partidos, da sociedade civil e institutos de pesquisa. Bruno Bioni, diretor da Data Privacy Brasil, aduziu que embora o Tribunal Superior Eleitoral, enquanto controlador desses dados, tenha bases legais para publicar e dar transparência a essas informações, precisa fazê-lo a partir do tripé da finalidade, necessidade e adequação, princípios previstos na LGPD, de modo a tratar dados pessoais para atingir a finalidade pretendida, mas sendo o menos intrusivo possível. Sugere o estabelecimento de níveis de camadas de acesso a essas informações, considerando também o ciclo de vida desses dados.
Diante da importância do acesso à informação na formação do voto e como ferramenta de controle social, parece-nos que restringir acesso aos dados de candidatos é precipitado, incluindo o estabelecimento de um limite temporal à sua disponibilidade, tendo em vista que o interesse público permanece mesmo após o período eleitoral. Dispô-las segundo camadas de acesso parece ser uma alternativa interessante para equilibrar interesse público e a privacidade dos candidatos.
De qualquer forma, a implementação das recomendações trazidas na audiência pública pode ser mais um desafio a ser enfrentado pela Justiça Eleitoral, que precisará correr contra o tempo, visto que o período para registros de candidaturas se encerra em 15 de agosto.
Fonte: JOTA. Leia matéria completa.