Neste segundo artigo da série sobre blockchain, direito e proteção de dados pessoais, verificaremos as potencialidades da relação dessa tecnologia com variadas áreas jurídicas, apontando suas vantagens e desvantagens e identificado os riscos e benefícios da sua adoção. Em seguida, veremos de que forma a blockchain se aplica a diversos setores específicos, como o de valores mobiliários, contratos inteligentes, cibersegurança, medicina, logística, registros imobiliários e o de Internet das Coisas (IoT)[1].
Vantagens e desvantagens da blockchain
Entre as múltiplas possibilidades de aplicação da blockchain no mundo jurídico, estão os contratos digitais autoexecutáveis, chamados de smart contracts, em que a parte não pode, ou não consegue, iniciar uma transação prometendo realizar um pagamento e depois descumprir a palavra, porque a sincronização que concilia e completa a transação faz parte do processo.
Há também os ativos inteligentes, gerenciados via contratos automatizados, o desenvolvimento de novos sistemas de governança que permitem carga mais elevada de participação democrática, bem como organizações descentralizadas autônomas que podem operar sem qualquer interferência externa[2].
Mas, como dissemos, as características da blockchain podem gerar diversos contratempos para o direito. Tome-se a característica de centralização, por exemplo, que pode acarretar problemas e perguntas jurídicas societárias da seguinte ordem:
- Quais seriam as exigências legais para publicidade e auditoria por parte das autoridades se todas as deliberações no âmbito da companhia se dessem privadamente, com a restrição de acesso de terceiros?;
- Como definir a jurisdição correta em caso de conflitos? De fato, a descentralização da blockchain, até em razão de as plataformas não terem um servidor específico, geram indefinição em relação à jurisdição e à legislação aplicável em cada caso concreto;
- A responsabilidade em casos de compartilhamento de informação confidencial seria de quem?;
- Como definir critérios de governança corporativa?
Além das citadas, vejamos outras desvantagens.
Podemos pensar na blockchain como uma rede de círculos concêntricos. No meio desse círculo temos o registro, protegido por meio de um robusto consenso descentralizado. No próximo círculo, temos os contratos inteligentes, com o código do software que gerencia as transações na rede. No círculo mais externo há os provedores das pontas (edge providers), que permitem trocas e serviços de carteira (wallet services), perfazendo a interface entre a criptomoeda e o mundo real. Cada camada possui a sua fraqueza, que é diferente uma da outra, e que analisaremos a seguir.
Na camada mais interna, a do registro, a blockchain é vulnerável porque depende de técnicas criptográficas modernas, que não são invioláveis, especialmente por meio do uso de computação avançada, como a computação quântica, que é capaz de quebrar a criptografia que computadores convencionais não incapazes de quebrar.
Por óbvio, essas falhas se aplicam, e até com maior veemência, sobre outros sistemas de transações com criptografia, mesmo sem o uso de blockchain. Vale notar que os maiores especialistas do mundo em criptografia têm sido desafiados a tentar quebrar a criptografia da blockchain, com o intuito de reforçar a qualidade da proteção. Nesse ponto, a falha mais provável está na implementação das técnicas de criptografia, como a criação de números aleatórios que não são realmente aleatórios.
Ainda nessa primeira camada, vulnerabilidades mais sérias estão relacionadas ao processo de mineração. É a famosa tese do ataque dos 51%. Se 51% do poder de mineração for controlado por uma pessoa ou um conjunto coordenado de pessoas na rede, é possível validar blocos pré-selecionados, ainda que se gaste mais recursos. Embora seja improvável de acontecer, o risco do controle do poder de mineração tende a aumentar quando a atividade de mineração cai, o que ocorre quando o bitcoin se deprecia, por exemplo. Com menor atividade, há mais chance de se alcançar, ainda que momentaneamente, 51% ou mais do poder de mineração.
A segunda camada, a de contratos inteligentes, que implementa as transações na rede, também pode sofrer com erros e falhas de segurança, como qualquer código de software. Um exemplo são os casos de contratos inteligentes do Ethereum. Vejamos um caso concreto.
Em 2016, 11 mil pessoas investiram cerca de US$ 150 milhões em uma empresa de blockchain virtual, sem qualquer empregado, direção ou existência legal, The Distributed Autonomous Organization (DAO), um software de autoexecução de contratos inteligentes, com um sistema de crowdfunding online, rodado numa plataforma distribuída e sem uma autoridade central. Tudo correu bem até que alguém roubou um terço dos recursos durante o lapso temporal de poucas horas[3].
De acordo com o software de The DAO, a retirada dos valores foi completamente legítima e a blockchain não tinha como distinguir entre o ladrão e um usuário real. Pior ainda, a imutabilidade dos registros de blockchain tornou impossível parar ou reverter o curso das transações ilícitas. Eventualmente, metade da plataforma The DAO optou por se separar da original, objeto do furto, para conseguir restaurar os fundos perdidos. Mesmo assim, um grupo de usuários dissidentes discordou da divisão e começou a operar uma moeda duplicada, na mesma rede em que houve a apropriação indevida, causando grande confusão.
Por fim, a terceira camada, a dos provedores de serviços diretos ao usuário também está sujeita a problemas. Mesmo quando o sistema é descentralizado, ele é geralmente acessado por meio de poucas empresas. Na teoria, portanto, qualquer um poderia operar uma cópia da blockchain na rede pública, como o bitcoin e o ethereum. Na prática, porém, as exigências técnicas e de hardware representam custos proibitivos para usuários ordinários, criando a necessidade de intermediários.
Por isso, praticamente todos os usuários utilizam serviço de wallet, como o Mercado Bitcoin e outros, e devem neles confiar, assim como confiam em seus bancos. Esses serviços armazenam as chaves criptografadas de seus clientes, que é o que os permite acessar as suas criptomoedas por meio de um nome de usuário e senha. Contudo, caso essas empresas sejam hackeadas, as referidas chaves se tornam vulneráveis.
Diante do exposto, vimos que há inúmeros problemas e potenciais riscos avindos com o uso da tecnologia.
Mas a blockchain traz também muitas vantagens. De fato, se tantos esses problemas existem, porque um número crescente de empresas está adotando a tecnologia blockchain? Simplesmente porque ela resolve problemas reais e possui algumas vantagens. Não é à toa que hoje há US$ 740 bilhões em bitcoins no mundo, levando em conta o valor de US$ 39 mil para a criptomoeda[4]. Vejamos abaixo, rapidamente algumas dessas vantagens.
A primeira seria a de evitar conflitos com autoridades públicas. Em 2016, em Buenos Aires, autoridades proibiram que empresas de cartão de crédito processassem pagamentos para o Uber, que violava normas locais. A partir disso, algumas empresas que tinham cartões baseados em bitcoin, e não dependiam de uma conexão local de uma grande empresa de cartão, passaram a processar os pagamentos.
Uma segunda vantagem seria a rapidez e eficiência nas transações. Com o uso da blockchain, há verificações constantes de cada bloco de transação, que repercutem para todo o sistema. Assim, a “verdade” ou o estado da rede é compartilhado a todos o momento com os usuários do sistema. O banco Goldman Sachs chegou a estimar que o uso da tecnologia poderia representar uma economia de até US$ 12 bilhões anualmente apenas para acordos no âmbito de seguros.
Enfim, como já explicamos acima, a blockchain ajuda a resolver problemas de eficiência, confiabilidade e responsabilidade, até mesmo garantindo a execução adequada de determinado contrato.
As diferentes aplicações de blockchain no direito
Blockchain e valores mobiliários
O uso de blockchain para a transferência de valores mobiliários é certamente o mais desenvolvido e popular. A tecnologia é especialmente eficiente para reduzir o tempo de transferência bem como as taxas pagas ao sistema financeiro. Ao possibilitar a eliminação de intermediários e possibilitar transferências em tempo real, a tecnologia é capaz de proporcionar elevada economia a bancos e usuários. Imagine, a exemplo, a possibilidade de eliminação de taxas bancárias sobre os bilhões de dólares todos os anos; valores que são encaminhados pelos emigrantes a familiares e amigos que continuam nos seus respectivos países de origem, por exemplo. A partir do momento em que transações financeiras são feitas por pessoas em qualquer lugar do mundo, a blockchain pode implicar uma injeção de liquidez e a universalização de acesso para negociações dos mais diversos ativos.
Blockchain e contratos inteligentes
A blockchain também pode ser usada para a elaboração dos chamados contratos inteligentes, que nada mais são do que programas de computador que executam automaticamente as cláusulas pactuadas entre duas ou mais pessoas. Ao implementar as cláusulas contratuais, sem intervenção humana, a blockchain confere maior segurança jurídica e confiabilidade aos negócios jurídicos, facilitando acordos mesmo entre pessoas completamente desconhecidas. Um contrato social inteligente, em tese, permitiria que pessoas viessem a se tornar sócias sem prévio conhecimento recíproco ou confiança, independentemente do tipo de empresa, pois as cláusulas relacionadas à sociedade, tais como as de distribuição de lucros, seriam automaticamente executadas. Isso, em tese, permitiria a redução drástica de custos de transação, facilitando investimentos e o empreendedorismo. Na indústria da música, por exemplo, os contratos inteligentes podem ser utilizados para garantir o pagamento de direitos autorais em tempo real, ao rastrear e contabilizar em aplicativos de streaming, como Spotify, o número de vezes que a música de determinado artista é executada.
Blockchain e cibersegurança
Os protocolos fundados em blockchain também são considerados extremamente promissores para garantir a cibersegurança, exatamente em virtude das características de imutabilidade, transparência e descentralização do livro de registro. Com os dados distribuídos na rede, não há uma entidade central para ser alvo de ataques cibernéticos, nem existe uma base de dados centralizada sujeita a vazamentos. Na medida em que o potencial invasor necessita de múltiplas chaves distintas, pertencentes a diferentes usuários da blockchain, para conseguir alterar o livro de registro, as dificuldades para a invasão ao sistema crescem exponencialmente.
Blockchain e medicina
Blockchains também podem ser usadas para a gestão de registros médicos, na medida em que asseguram a atualização em tempo real das bases de dados relativas a diferentes pacientes, independentemente do hospital, da clínica ou do médico com quem se tenha se consultado. Uma base única daria ao paciente o controle da informação sobre exames, laudos e receitas de medicamentes, que geralmente estão espalhados pelas bases de dados de diferentes prestadores de serviço.
Blockchain e logística
Na logística, o uso de blockchains pode facilitar a relação entre as diversas empresas envolvidas na cadeia de produção e distribuição ao permitir que todas elas acessem uma única base de dados que contenha informações sobre a forma de produção, os prazos de validade, a distância percorrida por cada produto e o modo de armazenagem em tempo real. Ao cliente, também é facilitada a obtenção de informações sobre onde o produto foi produzido e qual o caminho percorrido até chegar ao estabelecimento comercial, o que lhe permite realizar um melhor gerenciamento do estoque. O rastreamento de produtos em tempo real também contribui para resolver problemas relacionados à confiança entre as partes, facilitando, por exemplo, o compartilhamento de caminhões entre empresas e o rateamento dos custos, inclusive em caso de acidentes.
Blockchain e registros públicos
A tecnologia também pode revolucionar o sistema de registros públicos, pois as características e atributos da tecnologia encaixam-se perfeitamente ao que é exigido para a criação de sistemas escriturários confiáveis. De início, a existência de um protocolo uniforme nas serventias extrajudiciais traria vantagens em relação à desburocratização e à agilidade do serviço. Também viabilizaria o acesso remoto às informações necessárias à realização de negócios jurídicos.
De fato, os cartórios de notas brasileiros lançaram uma plataforma amparada pela tecnologia blockchain, a qual já inscreveu milhares de atos registrais, tais como transferências de imóveis, divórcios e testamentos. Tudo que é assinado digitalmente no e-Notariado[5] ganha também uma hash no Notarchain. A autenticidade dos documentos é garantida pelo uso de blockchain, que confere segurança e confiabilidade aos documentos por meio de um livro de registros criptografados. Na rede de blockchain criada, cada cartório de notas é um nó do sistema de segurança e troca de dados. Além disso, a criptografia forte que assegura a validade de um documento eletrônico acaba por ser compartilhada entre os diferentes usuários, de modo a que não aconteçam fraudes em quaisquer das pontas da rede[6]. O tema é atualmente regulado pelo Provimento n° 100, de 2020, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Blockchains e a IoT
Por fim, uma das áreas consideradas mais promissoras para o uso de blockchains é a da chamada Internet das Coisas — Internet Of Things (IoT). Cada vez mais os aparelhos que usamos no dia a dia exploram o uso de sensores e a capacidade de se conectar à internet. Realmente, tem aumentado exponencialmente o número de casas, geladeiras, veículos, edifícios e infraestruturas presentes em ambientes naturais e urbanos com sensores, fazendo com que estes aparelhos sejam capazes de captar uma enorme quantidade de dados do meio ambiente, conectar-se à Internet e trocar informações entre si.
Neste cenário, o uso de blockchains contribui para registrar os dados captados pelos sensores no livro-razão, evitando a duplicação ou modificação deles posteriormente. Tal medida, a exemplo, revela-se bastante útil na execução de contratos inteligentes automatizados entre máquinas. A tecnologia também permite a troca de informações entre os diferentes computadores sem a necessidade de um servidor central que valide as informações. A criptografia, o processo de autenticação descentralizado e a eliminação de terceiros para garantir a confiabilidade do sistema ainda contribuem enormemente para a cibersegurança e a redução de custos.
Em resumo, os potenciais usos de blockchains são múltiplos e seria possível um estudo específico para discorrer sobre cada um deles. E, ao mesmo tempo que impressionam as possibilidades do uso benéfico da tecnologia, surgem cada vez mais situações de potencial violação à privacidade e aos dados pessoais. É o que veremos no próximo e último artigo da série sobre blockchain, direito e proteção de dados pessoais.
[1] Os artigos basearam-se, principalmente, em artigos de Kevin Werbach (Werbach, Kevin. Trust, But Verify: Why The Blockchain Needs The Law. Berkeley Technology Law Journal, Vol. 33, 2019), de Antônio Maristrello Porto e outros (Porto, Antônio Maristrello et al. Tecnologia Blockchain e Direito Societário: Aplicações Práticas e Desafios para a Regulação. RIL Brasília a. 56 n. 223 jul./set. 2019 p. 11-30), de João Pedro Quintais e outros (Quintas, João Pedro, et al. Blockchain And The Law: A Critical Evaluation. Amsterdam Law School Legal Studies Research Paper nº 2019-03, 2019) e no relatório do Parlamento Europeu (Blockchain and General Data Protection Regulation: can ledgers be squared with European data protection law?. European Parliamentary Research Service. In: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2019/634445/EPRS_STU(2019)634445_EN.pdf)). Ressaltamos que, embora parte relevante dos artigos tenha se baseado nos referidos autores, não fizemos referência específica a eles a todo momento, a fim de não tornar a leitura demasiadamente cansativa.
[2] Porto, Antônio Maristrello et al. Tecnologia Blockchain e Direito Societário: Aplicações Práticas e Desafios para a Regulação. RIL Brasília a. 56 n. 223 jul./set. 2019 p. 11-30.
[3] Ver em: https://www.wired.com/2016/06/50-million-hack-just-showed-dao-human/ . Acesso em 13/10/2021.
[4] Ver em: https://www.investopedia.com/tech/how-much-worlds-money-bitcoin/ . Acesso em 13/10/2021.
[5] E-Notariado é uma plataforma de serviços notariais que permite acessar serviços de cartórios de todo o Brasil de forma totalmente digital, sem a necessidade de comparecimento presencial a um cartório físico.
[6] https://www.irib.org.br/noticias/detalhes/blockchain-processo-que-promete-otimizar-os-servicos-cartorarios-no-agronegocio
ALEXANDRE SANKIEVICZ – Pesquisador do IDP-CEDIS. Consultor legislativo da Câmara dos Deputados. Mestre em direito constitucional. Fulbright Fellow na American University
GUILHERME PEREIRA PINHEIRO – Professor do mestrado em direito do IDP-DF. Doutor em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em direito comparado pela Universidade de Columbia, Nova York (LL.M). Mestre em direito pelo Uniceub. Pós-doutor em direito e democracia pela Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae). Ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Consultor legislativo na Câmara dos Deputados e advogado
Fonte: JOTA. Leia matéria completa.