O capitalismo criou nas pessoas novos desejos e anseios, mas, com o surgimento de plataformas digitais e dos algoritmos, certas empresas aceleraram e inverteram esse processo. Em vez de simplesmente desenvolverem bens e serviços para antecipar o que podemos querer, esses agentes cada vez mais moldam nossos comportamentos[1].
No contexto de crescente concentração de capital[2] e intensificação da dominância de certos atores em ecossistemas digitais, as plataformas digitais — em particular as chamadas big techs — estão sendo submetidas a novos regimes regulatórios. De forma acelerada e em meio a acirrados debates, um novo paradigma, fruto de uma nova onda de regulação, ganha corpo em várias economias liberais ao redor do mundo. Tais medidas — como se verá neste artigo, dividido em duas partes — visam a impor uma série de obrigações específicas, de forma assimétrica, a certos agentes econômicos cuja atuação, frequentemente integrada, abrange a oferta de diversos serviços, usualmente associados à publicidade e à propaganda na internet.
A partir dos casos da União Europeia, do Reino Unido e dos Estados Unidos descrevemos algumas dessas recentes iniciativas regulatórias (incluindo projetos de lei em discussão e normas já aprovadas) para mapear o que se está regulando, que mercados têm sido mais diretamente afetados pelas novas regras e se há especificidades em relação às big techs.
União Europeia
No começo deste mês de julho, a União Europeia se tornou a primeira jurisdição a estabelecer uma moldura regulatória abrangente para supervisionar plataformas digitais. No dia último dia 5, o Parlamento Europeu aprovou, em primeira votação, com ampla maioria, dois significativos pacotes legislativos voltados à regulação de grandes empresas de tecnologia: o Digital Services Act (DSA), que estabelece regras relativas aos serviços e ao conteúdo oferecidos por plataformas de internet, e o Digital Markets Act (DMA), que almeja fortalecer e promover a concorrência e mercados digitais — sobre o qual já falamos aqui. Ambas as propostas avançaram rapidamente os trâmites legislativos, sinalizando inequívoca vontade política em Bruxelas para fortalecer a regulação digital europeia, conforme resumidamente apresentado abaixo.
O DSA foi elaborado em resposta a crescentes preocupações com a circulação de conteúdo ilegal na internet — incluindo a oferta de produtos falsificados ou perigosos, a incitação à violência e o discurso de ódio — e para estabelecer regras de transparência e responsabilização das plataformas digitais mais alinhadas com o seu funcionamento e tamanho. A nova lei estabelece também regras para publicidade online, limitando o uso de alguns tipos de dados para personalização de anúncios (incluindo religião e orientação sexual) e proibindo o direcionamento de publicidade para crianças.
O pacote inclui, ademais, obrigações de transparência para o funcionamento de algoritmos usados pelas empresas de tecnologia para recomendação e disponibilização de conteúdo ou produtos, e restringe a adoção de ‘padrões obscuros’ (ou dark patterns, no termo mais conhecido em inglês) — designs manipuladores que levam as pessoas a adotarem certos comportamentos ou deixarem de tomar determinadas medidas. O DSA ainda confere poderes para reguladores europeus policiarem os esforços dos gigantes da tecnologia no combate à disseminação de “notícias falsas” e garante a pesquisadores pré-autorizados acesso a informações e dados das plataformas para a realização de pesquisas que irão informar a atuação dos reguladores.
O DSA é um exemplo típico de regulação assimétrica, estabelecendo regras diferenciadas para diferentes tipos de plataformas, dependendo da natureza de seus serviços, bem como de seu tamanho e impacto. As maiores plataformas de internet (VLOP na sigla em inglês para very large online platforms), incluindo grandes mecanismos de busca, com mais de 45 milhões de usuários europeus, que têm um papel central no debate público e nas transações econômicas, estarão submetidas a regras mais rígidas por conta dos riscos específicos associados a elas. Certos deveres substantivos do DSA se aplicam apenas a plataformas VLOP, que serão designadas e estarão sob supervisão direta da Comissão Europeia, sujeitando-se a obrigações de gerenciamento e auditoria externa de risco e prestação de contas públicas, fornecimento de relatórios de transparência e informações acerca dos mecanismos de recomendação, bem como compartilhamento de dados com autoridades e pesquisadores. Plataformas muito pequenas, por seu turno, ficam isentas da maioria das obrigações sistêmicas e serão monitoradas por estados-membros.
Em caso de descumprimento das obrigações previstas no DSA, as empresas estarão sujeitas a multas de até 6% da receita global nos casos mais graves, e podem ser demandadas pelos reguladores a tomar medidas imediatas ou se comprometer a alterar aspectos da oferta de produtos e serviços para remediar riscos ou danos potenciais ou efetivos a usuários. Em última instância, caso se recusem sistematicamente a cumprir obrigações, será possível solicitar judicialmente a suspensão temporária dos seus serviços.
Para Estados-membros que farão a supervisão de plataformas menores, o DSA entrará em vigor 15 meses após a adoção oficial do texto (que ocorre 20 dias após a publicação no Diário Oficial da União Europeia), ou a partir de 1º de janeiro de 2024, o que ocorrer mais tarde. No caso das VLOP, as obrigações poderão passar a valer mais cedo: quatro meses após a sua designação como tal pela Comissão, durante a vigência da lei. Para arcar com o custo administrativo que será gerado para supervisão das plataformas e aplicação das obrigações previstas na nova lei, VLOP sujeitas ao DSA terão que pagar uma taxa anual, calculada com base em suas receitas e número de usuários.
O DMA, por seu turno, visa a combater a concentração sistêmica em mercados digitais e a promover condições mais equitativas para concorrência entre as empresas que atuam nesses mercados. Para tanto, a proposta estabelece uma série de regras ex ante para grandes plataformas digitais, buscando evitar que abusem de suas posições dominantes, e facilitar a entrada e a sobrevivência de outros atores.
De forma similar ao DSA, o DMA também prevê aplicação assimétrica. No caso, as obrigações estabelecidas na proposta concernem apenas a plataformas consideradas gatekeepers. Como já escrevemos aqui, esses agentes detêm um papel significativo nos ecossistemas digitais em que atuam, por funcionarem como importante porta de entrada para usuários comerciais e por intermediarem relações entre estes e usuários finais. Plataformas gatekeepers, assim, detêm poder de mercado suficiente para estabelecerem as regras do jogo aplicáveis a todas as outras empresas que direta ou indiretamente dependem de sua estrutura e de seus serviços, e podem atuar como verdadeiros “gargalos”.
As obrigações do DMA foram desenhadas especialmente com vistas aos problemas regulatórios e concorrenciais causados pela atuação de gatekeepers, a serem classificados de acordo com critérios estabelecidos pela nova lei. Primeiramente, a plataforma deve ser identificada com gatekeeper de pelo menos um dos “serviços centrais de plataforma” (CPS, sigla do termo em inglês core platform services) oferecidos em mercados digitais, incluindo serviços como busca, redes sociais, mensageria, compartilhamento de vídeos e armazenamento em nuvem, entre outros.
Outros três critérios cumulativos são usados para determinar se plataformas estarão sujeitas às obrigações do DMA: i) o impacto da plataforma no mercado interno europeu, considerado relevante se ela fornecer CPS para pelo menos três Estados-membros e se o faturamento da empresa na Europa for igual ou superior a 7,5 bilhões de euros ou com valor de mercado de pelo menos 75 bilhões de euros no último exercício; ii) o controle de um ponto de entrada relevante para usuários comerciais acessarem usuários finais, exercido caso os serviços centrais oferecidos registrarem mais de 45 milhões de usuários finais mensais e mais de 10.000 usuários corporativos anuais ativos na União Europeia; e iii) posição de mercado consolidada e duradoura, presumida se os outros dois critérios forem observados nos três anos financeiros anteriores.
Há um mecanismo que permite à Comissão Europeia designar como gatekeepers plataformas que não necessariamente cumpram os critérios quantitativos indicados, mas que, com base em uma análise qualitativa, apresentem características que apontem para riscos de distorção da concorrência. Empresas que ainda não detêm uma posição consolidada e duradoura, mas que tenham potencial para tanto, serão submetidas a um subgrupo de obrigações para evitar que alcancem posições de dominância de forma injusta.
Plataformas gatekeepers que entrarem no escopo da futura lei estarão sujeitas a uma série de obrigações de fazer e não fazer. Isso é, terão que adotar certas medidas para garantir que mercados digitais permaneçam abertos à concorrência e evitar determinadas condutas que poderiam afetar negativamente as condições de acesso ou de competição em tais mercados. As obrigações positivas incluem regras de interoperabilidade e portabilidade, como a oferta da possibilidade de instalação e desinstalação de aplicativos em dispositivos, facilidade para exclusão de contas e para transferência de informações para outra plataforma, assim como para integração de serviços oferecidos por terceiros, entre outras. Ao mesmo tempo, gatekeepers cobertas pela lei estarão proibidas de usarem dados de usuários comerciais em suas plataformas caso estes sejam também concorrentes e não poderão usar o ranqueamento ou disponibilização de conteúdos em suas plataformas para favorecerem seus próprios produtos ou serviços (prática conhecida como self-preferencing), entre outras restrições. A lei também inclui uma obrigação geral para garantir que o acesso a plataformas gatekeepers se dê de forma justa, razoável e não discriminatória (FRAND, sigla para fair, reasonable, and non-discriminatory).
No caso de não observância das regras do DMA, as empresas gatekeeper estão sujeitas a multas de até 10% do seu faturamento, chegando a 20% em caso de reincidência, bem como multas periódicas de até 5% do seu faturamento diário global. Além disso, a Comissão pode impor sanções adicionais no caso de infrações sistemáticas, incluindo remédios estruturais (e.g., venda de ativos, “desmembramento” ou “quebra” da empresa em unidades menores) ou a proibição de aquisição de novos negócios em mercados digitais.
O DMA entrará em vigor 20 dias após a publicação no Diário Oficial da União Europeia e suas obrigações serão aplicáveis seis meses mais tarde, quando a Comissão Europeia iniciará os trabalhos de identificação e designação de gatekeepers. Em termos de enforcement, o DMA não prevê o pagamento de uma taxa de supervisão. Sua aplicação será compartilhada entre o novo departamento a ser criado para aplicar o DMA e o DSA (DG CNECT) e o já existente Departamento de Política da Concorrência (o DG COMP), cabendo ao último o tratamento tradicional dos processos.
Fonte: JOTA. Leia matéria completa.